Lei da Palmada: Projeto de Lei nº 7.672/10
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Corre-se o risco de, por meio de uma atuação equivocada, desdenhar a instituição da família e, em nome do futuro, abalar o presente e olvidar o passado. O projeto em questão, acaso aprovado, não pode ter o significado de uma colonização da instituição da família pelo Estado.
No dia 21 de maio de 2014 foi aprovada a redação final do Projeto de Lei 7.672/10 pela Câmara dos Deputados. O projeto trata da polêmica “Lei da Palmada”, que agora ganha o epíteto de “Lei Menino Bernardo” em referência à criança Bernardo Boldrini (11 anos) supostamente morta pelo pai e a madrasta em Três Passos – RS.
Um lado bom desse projeto é que, ao contrário do que era alardeado pela mídia, não há um tratamento da matéria ali enfocada sob o prisma criminal com a criação de mais tipos penais inúteis, contraproducentes e geradores de confusão no já inchado e tumultuado Direito Penal brasileiro, a exemplo da ultima “barbeiragem” legislativa feita na Lei 12.971/14, alteradora do Código de Trânsito Brasileiro e que é tão inepta que poderia muito bem ganhar o apelido de “Lei Tiririca” (verdadeira palhaçada).
Percebe-se, portanto, que infelizmente um dos maiores alívios à população em geral e aos operadores e estudiosos do Direito no Brasil ocorre quando o nosso legislativo “não faz” alguma coisa! Porque quando se mete a fazer geralmente só resta erguer as mãos aos céus gritando: “Valha-me Deus”!
Portanto, felizmente o legislador se absteve de enveredar pela seara criminal, mesmo porque a imposição de castigos desmedidos a crianças e adolescentes já tem mais que suficiente tutela penal nos crimes de Tortura – Castigo (artigo 1º., II, da Lei 9.455/97), Maus – Tratos (artigo 136, CP), afora vários dispositivos penais existentes no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei. 8.069/90) com especial destaque para o artigo 232 daquele diploma. Frise-se inclusive que o primeiro crime supra mencionado (Tortura – Castigo) é equiparado a hediondo nos termos do artigo 5º., XLIII, CF e artigo 2º., da Lei 8.072/90. Ademais, há toda uma rede de especial proteção penal quando a vítima é criança ou adolescente. Arrolo apenas alguns exemplos: iniciando pela Lei de Tortura (Lei 9.455/07) há previsão de causa de aumento de pena no artigo 1º., § 4º., II, quando o crime é perpetrado contra criança ou adolescente. No caso da criança Bernardo Boldrini, que acabou dando apelido à lei em comento, o crime de homicídio, que tutela obviamente também crianças e adolescentes, prevê causa de aumento de pena quando a vítima é menor de 14 anos no artigo 121, § 4º., “in fine”, CP. Finalmente, apenas exemplificando, com repercussão para todo o ordenamento penal, há agravantes genéricas no artigo 61, CP, para quando qualquer crime seja cometido contra “criança” (inciso II, alínea “h”); “contra descendente” (inciso II, alínea “e”); “com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação” (inciso II, alínea “f”); “quando o ofendidos estava sob sua imediata proteção ou autoridade” (inciso II, alínea “i”).
O projeto concentra-se então em medidas de caráter administrativo com matiz profilático – preventivo, deixando a questão criminal, se o caso, a ser resolvida de acordo com a legislação já existente sobre o tema.
Não se pode questionar que há uma justa previsão constitucional a ser respeitada no que tange à chamada “proteção integral” das crianças e adolescentes, a qual naturalmente se espraia por todo o ordenamento ordinário nas diversas normas tais como as penais acima mencionadas, o Estatuto da Criança e do Adolescente etc. Também ninguém pode questionar que a aplicação de castigos imoderados, abusos e violência contra crianças e adolescentes sob o pretexto de discipliná-los ou “educá-los” (o conhecido “animus corrrigendi vel disciplinandi”) é uma aberração social, cultural e, consequentemente, jurídica. Somente sádicos ou pessoas que têm a consciência encoberta por um véu de ignorância por demais denso podem defender uma disciplina ou “educação” por meio de espancamentos, queimaduras, chicotadas, socos e pontapés, quando não atrocidades piores.
Dessa forma não é possível criticar qualquer esforço empreendido para impedir atitudes abusivas na lida diária, pedagógica e educativa de crianças e adolescentes. Como já dito, a normativa que ensaia vir à tona tem a vantagem de não estar viciada pelo “pampenalismo”. Não obstante, esses esforços dirigidos para evitar práticas abusivas contra a juventude podem ter um efeito nefasto se assumirem uma espécie de tendência iconoclasta e desconstrucionista com relação a uma instituição que já demonstrou ao longo dos tempos (passou no “teste do tempo”) sua importância crucial no sustento das mais diversas sociedades humanas, qual seja, a família. Família esta, aliás, com também justa e prudente tutela constitucional.
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Poder-se-ia objetar que não é propriamente de uma “família” que se estaria tratando quando um pai ou uma mãe ou ambos simplesmente agridem severamente os filhos. Afinal, a família genuína deve ser alicerçada no amor, no diálogo, na convivência pacífica, no bem – estar de seus membros e jamais na violência. Entretanto, o que se está a destacar não é a defesa da violência intrafamiliar, mas sim a necessidade de não extrapolar, de não violar a razoabilidade no trato da matéria da prevenção e repressão a essa violência indesejada, para acabar atingindo preterintencionalmente a instituição da família e suas condições de sustentabilidade.
Ocorre que mesmo que um regramento jurídico seja em sua letra comedido, mesmo que a intenção de alguém ou de um grupo seja de boa índole, muitas vezes as consequências de nossas ações e ideias acabam escapando pelo vão dos dedos. E isso ocorreu diversas vezes na história e corre um risco ainda maior de acontecer num mundo contemporâneo onde é comum demais que as decisões mais importantes sejam tomadas por pessoas semi - letradas, as quais são capazes de identificar problemas, fazer críticas, mas são incapazes de reconhecer o valor de conquistas antecedentes e de sua tutela. Nas palavras de Scruton, citando T. G. Massaryk:
“O filósofo checo T. G. Mssaryk (1850 – 1937) atribuiu muitas doenças do mundo moderno à ‘meia – educação’. Segundo sugeriu, foi a proeminência na vida pública dos semi - educados que estimulou as esperanças e destruiu as certezas da espécie humana. A fé foi lançada na dúvida, a moral relativizada, e o simples contentamento destruído pela crítica sarcástica daqueles que podem ver suficientemente longe para questionar os fundamentos da ordem social, mas não suficientemente longe para os proteger” (grifo nosso). [1]
Na verdade ocorre muito comumente que grandes questões sejam levianamente enfrentadas porque a massa das pessoas e mesmo aqueles dos quais se esperaria maiores luzes não estão aptos a atingir um nível mais aprofundado de análise nos moldes do que descreve o significado da palavra inglesa “understand” (compreender) e que tem literalmente o sentido de “stand under” (estar embaixo), ou seja, entender de uma forma profunda, por dentro, penetrando no âmago das questões.
Mas, não é somente devido a uma deficiência de formação cultural que esse fenômeno da imprevisão da consequências ocorre. Como afirma Robert Merton, as chamadas “consequências fortuitas” da ação social, enquanto aquelas que fogem ao controle do ator no instante em que ele resolve agir no âmbito político são comuns, mesmo que esse ator seja dotado de grandes luzes. Ocorre que essas “consequências fortuitas” não estão ligadas ao conhecimento que o agente detém, mas justo o inverto, estão conectadas ao conhecimento que o agente não detém pelo simples fato de que esse conhecimento não pode ser alcançado de forma antecipada, o que equivaleria à puerilidade de crer em antevidência. Esse fato da vida pode perverter de forma terrível as mais belas e nobres intenções iniciais. [2]
Não é um nobre intento a proteção da infância e da juventude contra indevidos abusos e violências? Claro que é. Não é uma nobre finalidade preservar a infância e a juventude com vistas a futuros adultos sãos? Claro que é. No entanto, corre-se o risco de, por meio de uma atuação equivocada, de uma aplicação irrazoável da legislação, desdenhar a instituição da família e, em nome do futuro, abalar o presente e olvidar o passado, o que equivale a destruir o futuro.
É muito importante dar ouvidos à lição de Scruton:
“Uma pequena dose de filosofia persuadir-nos-á que as pessoas sempre estiveram enganadas em procurar o teste de legitimidade no futuro, em vez de procurar no passado. Porque o futuro, ao contrário do passado, é desconhecido e não está experimentado. (....). A adulação modernista do futuro deve ser vista como uma expressão de desespero, não de esperança”. [3]
Dessa forma é imprescindível ter a noção básica de que o projeto em questão, acaso aprovado, não pode ter o significado de uma colonização da instituição da família pelo Estado. O intervencionismo estatal deve ser limitado pelo bom senso. E se isso é verdade em áreas como a economia, no que tange ao âmbito familiar, à vida privada, torna-se ainda mais delicado. É preciso ter o equilíbrio necessário para não se deixar enveredar pelo tortuoso caminho que transforma a exceção em regra. A família, instituição tradicional da espécie humana devidamente tutelada pela Constituição Federal, é, como uma regra muito consistente, um espaço de proteção, esteio e orientação das crianças e dos adolescentes, onde encontram todo o apoio para seu desenvolvimento como pessoas. Evidentemente há exceções em que esse ambiente “familiar” se perverte em espaço de opressão, agressão física, verbal, emocional e de toda espécie de corrupção. São famílias desestruturadas, as quais realmente necessitam de uma intervenção, frise-se, excepcional, do Estado. Não é possível que se possa dar crédito a concepções do chamado “libertarianismo” radical que prega um individualismo exacerbado em que qualquer intervenção estatal é considerada ilegítima. Também, por outro lado, não se pode comungar com um “estatismo” exagerado, no bojo do qual o Estado se transforma numa espécie de tutor dos indivíduos, invadindo esferas íntimas sem qualquer pudor ou limite. Na mesma medida em que o extremo de um individualismo descontrolado é indesejável, também é de se repudiar o que se tem chamado de “Nanny State”, ou seja, o “Estado – Babá” que se põe a regular milimetricamente questões estritamente pessoais da vida dos governados, numa arrogante e prepotente suposição de que as pessoas não podem saber o que é bom ou mau para elas mesmas e seus entres queridos. O caminho a indicar a virtude da mediania é a noção fundamental de um “liberalismo democrático” que valoriza a liberdade individual, impondo tão somente os limites necessários (proporcionais e razoáveis) a esta, exatamente a fim de que ela mesma possa ser garantida.
As crianças e adolescentes são obviamente sujeitos de direitos como qualquer ser humano e ainda com alguns privilégios, tendo em vista sua especial condição de “pessoa em desenvolvimento”, bem como as fragilidades inerentes à faixa etária em que se encontram. Seria um insulto à sanidade e a uma concepção minimamente racional do Princípio da Igualdade, tratar de forma idêntica a um adulto uma criança de um ano!
Não se discute que essas pessoas merecem uma especial proteção estatal, mas antes da proteção estatal vem a necessária proteção familiar. Nesse campo o Estado só pode ter uma atuação supletiva em casos extremos como a ausência absoluta da família (órfãos) ou em casos de famílias desestruturadas que realmente são um mal para o jovem ou a criança.
É exatamente pela condição de hipossuficiência das crianças e adolescentes que estes não podem ser convertidos em censores dos adultos, em soberanos absolutos do lar, em seres intocáveis em seus instintos e desejos, sob pena de destruir todo o edifício da instituição familiar que é muito mais importante que o Estado para o desenvolvimento da pessoa humana. O grande perigo de uma “Lei da Palmada”, ainda que não enveredando pela seara penal, é converter-se em um instrumento de colocação dos pais sob o jugo dos filhos! Dessa forma, daqui a alguns anos teremos de fazer uma “Lei da Palmada” para proteger os adultos, criar “Conselhos Tutelares para os Pais” e quem sabe um “Estatuto do Pai e da Mãe” a fim de lhes garantir contra os abusos dos filhos menores! Estes mesmos que mimados por um “Estado – Babá” (“Nanny State”) terão se transformado em verdadeiros “filhos da mãe”.
Não se pode permitir que a ilusão do “bom selvagem” disseminada por filósofos como Jean – Jacques Rousseau e por uma antropologia idealista despregada da realidade e já desmentida pelos fatos, [4] seja o ponto fulcral de interpretação e aplicação de uma legislação tão relevante. Usando a expressão de Peter Sloterdijk, Bruckner chama a atenção para o fato de que na sociedade contemporânea estamos transformando a criança no nosso “bom selvagem a domicílio”. [5] É imprescindível transcrever a manifestação do autor:
“Ora, o primeiro direito que uma criança deveria ter é o de ser protegida contra a violência, a arbitrariedade e às vezes a crueldade dos mais velhos. Mas é também o direito contraditório de ser respeitada em sua natureza e sua despreocupação e de ser dotada de meios para sair progressivamente de sua condição à medida que cresce. Se quisermos ‘amadurecê-lo para a liberdade’, como dizia Kant a respeito do povo, é preciso esclarecê-lo e instruí-lo e não abandoná-lo a uma esplêndida indolência. Portanto, é perigoso destruir os abrigos (escola, família, instituições) por meio dos quais ele domina lentamente o caos da vida e indispensável condicioná-lo à responsabilidade, oferecendo-lhe tarefas ao seu alcance, dando-lhe o domínio gradual de esferas cada vez mais amplas. (....). Portanto nem toda sujeição é opressiva, se ela aguça o espírito e obriga a crescer dentro de certas regras, ou, para ser mais preciso, a sujeição é a própria condição da liberdade”. [6]
Por isso com acerto aduz Scruton que “as instituições, as leis, as restrições e a disciplina moral fazem parte da liberdade e não dos seus inimigos, e a libertação dessas coisas leva rapidamente ao fim da liberdade”. [7]
O perigo da criação de crianças mimadas que se converterão em adultos infantilizados é real e palpável. E o caminho pedagógico para isso tem sido, por incrível que pareça, traçado por alguns como se fosse a grande chave para uma humanidade melhor, sempre na crença de que o ser humano é uma “tabula rasa” sem “estrutura inerente” na qual “podemos escrever à vontade”. [8] Dessa forma, uma grande série de conceitos naturais à humanidade como, por exemplo, relações de parentesco, doença, sexo, entre outros passou a ser considerada como algo artificial, inventado ou socialmente construído. [9] É no bojo dessa espécie de pensamento ilusório e deletério que se pode sustentar um intervencionismo estatal exacerbado na instituição da família, destruindo-a, juntamente com seus benefícios sociais, ao tentar remodelá-la ao bel prazer de um indivíduo ou um grupo ideologizado.
Um exemplo grotesco dessa pseudointelectualidade é exposto por Pinker na descrição da prática educativa progressiva:
“A prática educacional progressiva, por sua vez, é baseada no bom selvagem. Como escreveu A. S. Neill em seu influente livro Summerhill: ‘Uma criança é inatamente sábia e realista. Se deixada por conta própria sem nenhum tipo de sugestão de adultos ela se desenvolverá até o máximo que for capaz de desenvolver-se”. Neill e outros teóricos progressistas das décadas de 1960 e 1970 argumentaram que as escolas deveriam abolir os exames, séries, currículo e até livros. Embora poucas escolas tenham ido tão longe, o movimento deixou sua marca na prática educacional. No método de ensino da leitura denominado Linguagem Integral, não se ensina às crianças que letra corresponde a que som; em vez disso, elas ficam imersas em um meio abundante em livros no qual se espera que as habilidades de leitura floresçam espontaneamente. Na filosofia de ensino da matemática conhecida como construtivismo, as crianças não se exercitam com tabuadas, mas são instadas a redescobrir por si mesmas as verdades matemáticas resolvendo problemas em grupo. Ambos os métodos apresentam maus resultados quando o aprendizado dos alunos é avaliado objetivamente, mas os seus defensores tendem a desdenhar dos testes padronizados”. [10]
Para um brasileiro que conhece muito bem os efeitos destrutivos dessas ideologias no ensino sua estupidez é evidente e também soa natural a única argumentação possível para seus defensores que é a pueril crítica aos métodos de avaliação. Ora, aprendizado é aprendizado e quem sabe um conteúdo, o desenvolve em uma avaliação. Acontece que, por mais que esses ideologizados queiram o aprendizado não ocorre por osmose (uma criança não aprende a ler sendo jogada no meio de um amontoado de livros e letras), nem por geração espontânea (as noções e raciocínios matemáticos não vão brotar do nada ou de uma sopa química no cérebro dos aprendizes). Toda criança ou jovem necessita sim do apoio e da orientação dos mais velhos, que, com sua experiência podem e devem lhes transmitir saberes que, de outro modo jamais adquiririam sozinhos. Isso é ancestral, já que mesmo nas culturas mais antigas sempre existiu, antes inclusive da escrita, a transmissão oral dos conhecimentos, das histórias pela narrativa dos mais velhos. Contudo, a força estupidificante de tratados como o “Emílio” de Rousseau [11] e, mais proximamente, “O mestre ignorante” de Jacques Ranciére, [12] com seu conceito enviesado de “emancipação intelectual”, é incomensurável.
Com essas abordagens se pretende demonstrar como qualquer espécie de pensamento ou ideologia que pretenda conceder a “pessoas em desenvolvimento” (crianças e adolescentes) uma emancipação antecipada ou uma autonomia praticamente absoluta, senão um verdadeiro poder de controle sobre os adultos, somente pode trazer consequências funestas para a família, para a escola e, finalmente, para a sociedade em geral. E a razão disso é mais do que notória: a autonomia é incompatível com a noção de “pessoa em desenvolvimento”, o que torna esse “pensamento” (se é que assim pode ser chamado) ou ideologia, algo teratológico e autofágico. É nesse ponto que o intervencionismo estatal deve ter seu limite bem delineado e atuar com grande cautela para que não ocorra uma inversão de papéis.
Uma boa dose de conservadorismo é salutar para a orientação da interpretação e aplicação da legislação estudada. E não se confunda o termo “conservadorismo” com a sua equivocada e preconceituosa utilização corrente. O conservadorismo é, a bem de ver, um meio termo virtuoso entre a postura “reacionária’ e a postura “revolucionária utopista”. Segundo Quinton, o reacionário nada mais é do que “um revolucionário virado no avesso”. Enquanto o “revolucionário” sonha com a utopia de um futuro de ouro a que se pode chegar bruscamente, por seu turno, o “reacionário” pretende uma ruptura com o presente em prol de uma “felicidade utópica passada”, de uma “idade de ouro” perdida na noite dos tempos. Em resumo, reacionários e revolucionários são praticamente orientados pela mesma motivação destrutiva para reconstrução, apenas apresentam vetores opostos na linha do tempo. [13]
O conservadorismo não prega uma estagnação nem um continuísmo, mas indica que toda mudança e todo agir individual e principalmente político deve ser cauteloso. O conservador não crê em milagres, em salvadores da pátria individuais ou coletivos, mas também não acredita que vive no melhor dos mundos possíveis como um Cândido de Voltaire.[14] Conforme aduz Coutinho:
“As tradições mais profundas foram emergindo naturalmente, o que significa que elas foram sobrevivendo naturalmente porque sucessivas gerações encontraram nelas vantagens que aconselharam sua manutenção. (...). E o fato de continuamente as termos considerado vantajosas e valiosas permitiu que as legássemos de geração em geração como se fossem uma herança coletiva. Ao serem úteis e benignas para nós, é razoável pensar que elas também o serão para aqueles que virão depois de nós”. [15]
Então há algo que deve ficar muitíssimo claro para todos aqueles que poderão vir a ter a incumbência de interpretar e aplicar a possível “Lei da Palmada”: “O estadista nunca atua sobre uma tela em branco, nem a sociedade se apresenta como tal, despojada de valores ou tradições que são anteriores a nós e que vão sobreviver a nós”. [16] E a família é um desses valores e tradições, inclusive protegido pela Constituição Federal, mas, mais que isso, pelo valioso e incontestável “teste do tempo” e dos frutos. Não é à toa que está ela listada por Donald E. Brown dentre os “Universais Humanos”, como um dos comportamentos constatados cientificamente por etnógrafos e antropólogos como observável nas mais diversas culturas e grupos humanos. [17]
Fato é que ao menos na Exposição de Motivos original do projeto se vislumbra uma preocupação do legislador com esse necessário equilíbrio e respeito à instituição da família. No item 6 consta o seguinte:
“Contudo, a condição peculiar de crianças e adolescentes e a especificidade das relações intrafamiliares demandam que a decisão de submeter sanções aos pais, ou de interferir formalmente na família de outras maneiras, seja tomada com muito cuidado”.
E no item 13:
“A proposição caracteriza os castigos corporais, bem como os tratamentos cruéis e degradantes que passam a figurar no rol de violações passíveis de enquadramento segundo as determinações do Estatuto da Criança e do Adolescente. Há que se ressaltar que a instauração de processos contra pais é na maior parte dos casos contrária ao interesse da criança e do adolescente e, portanto, o processo e outras intervenções formais (por exemplo, remover o agente violador) só serão considerados quando necessários para plena proteção da criança e do adolescente de situações extremas ou quando correspondam ao superior interesse dos mesmos”.
Enfim, a legislação projetada não se apresenta como um monstro de opressão à família, inclusive se analisando sua Exposição de Motivos. Não lança mão do Direito Penal como instrumento primeiro, como ocorre em muitos casos e isso é uma grande virtude. Deixa o Direito Penal em seu lugar de “ultima ratio”. Apenas explicita algo que já era sabido e consabido, ou seja, que nossa ordem Constitucional e nossa legislação ordinária repudiam os castigos físicos imoderados, o tratamento cruel e degradante de qualquer ser humano, mas, em especial, das crianças e adolescentes. Nesse passo, propõe medidas profiláticas e preventivas mediante normas administrativas e civis, bem como um conjunto de esforços para o enfrentamento do problema da violência intrafamiliar.
A grande questão e a maior preocupação fica, portanto, apenas com a forma como essa legislação será aplicada e interpretada, não somente pelo Judiciário, Ministério Público, Conselhos Tutelares e outros órgãos repressivos, mas por todo o aparato estatal que atuará em sua divulgação perante as famílias e, principalmente, perante os jovens. Isso porque se uma mensagem equivocada de inversão ou desconstrução da instituição familiar for disseminada, então essa lei, não por seu conteúdo literal, mas até ao reverso dele e em contraste com sua Exposição de Motivos, virá a ser uma catástrofe para o presente e o futuro brasileiros. E esse perigo é iminente devido não somente às ideologias que inspiram os agentes políticos dominantes no Brasil, mas no mundo mesmo, sendo constatável uma tendência à demonização dos pais, da família, das instituições tradicionais, esboçando-as como instrumentos de opressão, quando deveriam ser reconhecidas por seu valor comprovado. Esse é o perigo por que todos passamos, crianças, adolescentes e adultos. Terá o Brasil maturidade suficiente para aplicar corretamente essa legislação ou agirá como uma criança birrenta e cheia de vontades que acaba quebrando os próprios brinquedos?
REFERÊNCIAS
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/28877/lei-da-palmada-projeto-de-lei-n-7-672-10#ixzz35ruqvTg2