A sociedade anônima dos cupins
Eles se comunicam boca a boca, repartem tarefas, dividem-se em grupos e resolvem complicados problemas de ventilação e drenagem para construir suas casas enormes
por Roberto Muylaert Tinoco
Um cupim sozinho não é nada criativo. Vai e vem ao acaso sem parar, carregando um grãozinho de terra, quando muito. Mas se juntarmos um grupo deles, pequeno que seja tudo muda. Alguns vão se deter num ponto qualquer, demonstrar interesse pelo local. Ali depositam seu grãozinho de terra. O montinho atrai a atenção dos outros — e pronto todos entram numa atividade febril, cumprindo tarefas diferentes e bem determinadas. Trabalham em sociedade.
O cupim conta com um sistema ganglionar simples que reage a alguns estímulos de forma pouco perceptível e, às vezes, incoerente. Mas a reunião de um grupo deles faz aparecer uma espécie de atmosfera psíquica, uma vontade coletiva geradora de ações que exigem um certo grau de discernimento. Uma colônia de cupins, com vários milhões de indivíduos, consegue construir habitações sofisticadas, que exigem a solução de vários problemas complicados.
Muitos estudiosos perderam tempo procurando o centro de comando do cupinzeiro, tal como os fisiologistas do passado que dissecavam cadáveres para descobrir a alma das pessoas. É provável que a alma do cupinzeiro esteja encoberta pela trofalaxia, um fenômeno tão estranho quanto a palavra que lhe dá nome.
Ela significa que um inseto social, como é o cupim, participa de um sistema de alimentação coletiva, que se distribui de indivíduo a indivíduo por contatos boca a boca. Mas a trofalaxia não significa apenas alimento. Ela também proporciona uma forma de comunicação, com a transmissão de mensagens químicas, gota a gota. No exato momento em que as mandíbulas de dois cupins se tocam, uma minúscula gotinha se desprende da boca de um deles e passa para a do outro. Uma fração de segundo e o recado já está passado.
Até agora só foi possível decifrar algumas das dezenas, quem sabe centenas, de mensagens que uma gotinha dessas pode conter. Uma das que foram decifradas se parece muito com o que se convencionou chamar hormônio social. Cada indivíduo da colônia está rotulado por um hormônio, específico da categoria social a que pertence. Um cupim soldado carrega seu extrato próprio, da mesma forma que o operário ou as formas sexuadas, que garantem a reprodução da espécie.
A sociedade dos cupins evolui mais ou menos como as células embrionárias durante o processo de crescimento de um organismo. Ao se diferenciarem, elas se agrupam em tecidos diversos, que irão desempenhar diferentes funções nos vários órgãos. O hormônio social do cupinzeiro, ao chegar à boca de um recém-nascido, provoca um estímulo químico em suas células, induzindo-as a construir o tipo de indivíduo de que a colônia necessita naquele momento. É a característica dos cupins de se alimentarem constante e reciprocamente que garante o perfeito funcionamento desse sistema.
É ele que assegura a permanente circulação dos hormônios sociais entre todos os membros da colônia, pelo contato boca a boca. Na composição desse hormônio social entram parcelas ínfimas do hormônio individual de cada casta. Quando o cupinzeiro dispõe de número ótimo de soldados, estes circulam distribuindo boca a boca o hormônio social com a sua secreção particular, que vai agir sobre os recém-nascidos de forma inibidora: a secreção de soldado indica que eles não devem tornar-se soldados, pois há um número suficiente destes na sociedade. Quando, pelo contrário, não há soldados bastantes, menos recém-nascidos recebem essa secreção, e assim estão livres para se tornarem soldados, e não operários, de que o organismo estará bem suprido nesse momento. Tanto assim que eles terão recebido nos contatos boca a boca a dose de secreção inibidora que evita que eles se encaminhem para essa “profissão”.
Se fosse apenas isso, já seria uma fantástica maneira de manter o equilíbrio social entre as diversas categorias de cupins. Mas o mecanismo é ainda mais sofisticado: garante, por exemplo, maior produção de operários quando a colônia necessita, também, aumentar a produção de alimentos. Aliás, o movimento exploratório de uma legião de operários à procura de alimentos é típico de um organismo que lança tentáculos ao redor de si mesmo. Nesse caso, os tentáculos são muito mais precisos que o tatear aleatório de uma ameba, por exemplo.
Quando transportam o alimento aos diversos setores da colônia, os cupins operários desempenham um papel parecido com o dos glóbulos vermelhos do sangue, que percorrem todo o organismo nutrindo as células. Certas tarefas dos cupins soldados também têm semelhanças com as do sangue, quando bloqueia a ação de agentes agressores do organismo. Uma torrente de soldados é despejada na circulação do cupinzeiro assim que o alarma hormonal denuncia algum tipo de ameaça em qualquer setor da colônia: por exemplo, quando um animal estranho tenta invadir a casa de todos eles.
Nessa situação, os soldados entopem com seus corpos todas as vias de acesso ao local da agressão. Estancam a circulação na área afetada, morrem aglutinados e dão tempo para que, mais atrás, os operários construam crostas protetoras que isolem o intruso e cicatrizem as feridas que tornaram o superorganismo vulnerável.
A trofalaxia é responsável por essa harmonia de ações, mas não pode ser utilizada para explicar alguns fatos que ocorrem no cupinzeiro. Por exemplo, o momento das revoadas de acasalamento, conhecidas vulgarmente como aleluias. Elas proporcionam o encontro de machos e fêmeas oriundos de colônias diferentes, o que é muito importante para o fortalecimento genético das futuras colônias. As revoadas são muito perigosas para os insetos, pois sua aglomeração num único local, ao ar livre, atrai os animais predadores. O morticínio é sempre muito superior ao número de casais que conseguem se unir.
As aleluias são, portanto, um momento crítico para todos os superorganismos que irão trocar material genético entre si. Os minutos são preciosos, justificando o fato de que todos eles lancem ao ar suas formas sexuadas exatamente no mesmo momento. E esse momento é cuidadosamente preparado. É o hormônio social que prepara os indivíduos férteis para abandonarem a colônia. Para isso, predispõe todo o superorganismo a esse acontecimento, deixando-o agitado como se fosse um animal no cio.
As formas aladas, prontas para o acasalamento, são enviadas a compartimentos subterrâneos. O canal de acesso ao exterior permanece obstruído por centenas de operários, o que faz com que as formas sexuadas se comprimam aos milhares nas câmaras de espera, como se provocassem o inchaço das glândulas sexuais do superorganismo. O sinal para deflagrar simultaneamente a revoada de todas as colônias talvez seja uma simples chuva de verão. Não se sabe ao certo. Mas há um momento em que todas as formas sexuadas serão acometidas por um frenesi. Produzirão intensa vibração com as asas, provocando calor. O superorganismo fica então febril. O canal para o exterior é desobstruído e os casais se precipitarão para fora. Como se fossem o sêmen oriundo da ejaculação do cupinzeiro, eles flutuarão por breves momentos, como uma gigantesca e efêmera nuvem de insetos.
O conceito de superorganismo foi formulado pelo entomologista americano W.M. Wheeler. Ele acreditou estar abrindo uma perspectiva incrível para a Biologia ao sugerir que cupinzeiros, colméias e formigueiros fossem estudados como simples indivíduos, em face dos mecanismos de seleção natural. Afinal, a autonomia característica do ser vivo, que resolve sozinho seus problemas de alimentação, reprodução e defesa, é expressada de forma diferente entre os insetos sociais. Ela é substituída pela ação das castas coletoras de alimentos, reprodutoras e defensoras. Nenhum indivíduo atua decisivamente como representante da colônia na luta pela sobrevivência.
Nenhum membro pode representar isoladamente um modelo ou padrão responsável pela evolução ou pela sobrevivência da colônia. Esse padrão está contido nos genes transportados pelas formas sexuadas e só se materializa após a fecundação e a conseqüente formação de uma nova colônia. Visto desta maneira, o conceito de superorganismo parece coerente. Mas não se deve esquecer que o sucesso dos atuais superorganismos repousa sobre um sem-número de vitórias e fracassos, ocorridos há milhões de anos, quando insetos primitivos, machos e fêmeas, se dispuseram a viver em conjunto.
Os atuais superorganismos indicam que alguns deles obtiveram grandes vantagens quando passaram a contar com um prole assexuada para garantir a sobrevivência da espécie. Então fica claro que o superorganismo é a expressão maior de uma espécie de inseto. Mais precisamente, talvez, de uma fêmea fecundada, pois a partir dela, e até que aconteça a próxima revoada para acasalamento, todos os genes que irão perpetuar a espécie estarão sob os cuidados desse dedicado e laborioso superorganismo.
A questão permanece, e é a mais atual para os cientistas e pesquisadores que se ocupam com a vida desses insetos. Afinal, que são eles, exatamente, os cupins, as vespas, abelhas, formigas, todos os insetos chamados sociais porque vivem em vastos aglomerados onde as funções são cuidadosamente divididas por castas?
Sem dúvida, é fascinante encarar uma formiga como uma célula de um organismo. Célula errante, que anda, comandada a distância pela ação de um hormônio social, ligada a uma legião de outras formigas exatamente iguais a ela. A tese de Wheeler fez grande sucesso, sobretudo entre os estudiosos da Sociobiologia, um novíssimo ramo da Biologia que pretende explicar o comportamento social dos animais a partir de fundamentos genéticos. Contudo, mesmo eles não utilizam o conceito do superorganismo em suas pesquisas, pois nada ajudaria na solução dos problemas de genética, comportamento e fisiologia com que se defrontam os pesquisadores que trabalham com os insetos sociais.
Os cupins, as vespas e as formigas
Apenas duas ordens de insetos formam superorganismos: os Hymenoptera (formigas, vespas e abelhas) e os Isoptera (cupins). Se estão assim isolados na classificação, é sinal que os cupins diferem dos outros insetos sociais como um gafanhoto de uma borboleta. O estudo sistemático de insetos fossilizados levou os cientistas a uma notável descoberta: cupins e baratas foram estreitamente aparentados há uns trezentos milhões de anos. Mas as causas que levaram as baratinhas pré-históricas a se organizarem socialmente permanecem desconhecidas até hoje.
Com exceção dos cupins e das formigas — exclusivamente sociais, as vespas e abelhas apresentam diversas espécies solitárias e outras semi-solitárias, operando em variados níveis de organização. Para os cientistas, são modelos para estudo de como teriam sido os degraus vencidos ao longo da evolução da espécie, até que chegassem ao estágio atual. Nesse particular, são as vespas que oferecem a maior variedade de estilos de vida.
As espécies solitárias são caçadoras de insetos ou de aranhas, em geral. Cada espécie de vespa caçadora captura um único tipo de vítima, mas o destino desta é sempre o mesmo: paralisada pela ferroada, será mantida viva para ser devorada pela cria da vespa.
Algumas caçadoras de aranhas apenas cavam um buraco no solo, enterram o animal e depositam um ovo sobre ele. Outras preparam cuidadosas construções de barro, onde guardam uma ou mais vítimas. Em todos esses casos, as vespas abandonam os ninhos antes mesmo do nascimento das larvas, o que significa que as gerações sucessivas nem chegam a entrar em contato. Esse hábito só começa a se modificar com certas vespas cujas fêmeas escavam túneis ramificados, onde guardam animais paralisados em todos os terminais. Elas acompanham o crescimento das larvas e providenciam diariamente mais comida, de acordo com as necessidades.
Alguns estudiosos admitem a hipótese de que no passado a proximidade em que se encontravam algumas colônias de vespas semelhantes tenha feito surgir um comportamento comunitário entre elas. Terrenos encharcados ou secos em demasia podem tê-las levado a compartilhar uma nesga de espaço para os seus túneis. E assim algumas se impuseram sobre as demais, criando uma certa hierarquia. Essas rainhas arcaicas teriam, dessa forma, dado o primeiro passo em direção à construção dos grandes organismos sociais, nos quais uma crescente divisão do trabalho entre todas as castas e o estilo de cooperação entre elas desenvolvido culminaram finalmente na formação de verdadeiros superorganismos.
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