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Mesmo no século XXI, caçar bruxas ainda faz parte da tradição de uma cultura medieval presente no Brasil.
Primeiro, dezenas, depois centenas... O agrupamento, movido pelo espírito faminto do ódio, clama pela vingança coletiva mediante a imolação de seu alvo: uma bruxa, conhecida na comunidade por sequestrar menores para fins de amolação em rituais macabros. As evidências do obscurantismo eram incontestáveis: a mulher fora flagrada oferendo uma fruta a uma jovem criança – indícios que a “doutrina mais abalizada” indicam como a configuração da bruxaria (vide DE NEVE, Branca e outros sete. [s.d]). E como se esquecer da prova testemunhal (alguém que ouviu de fulano o que beltrano achava ter visto sicrano dizer)! O julgamento foi imediato. A pena máxima.
Embora a situação rememore ao período medieval europeu, o caso de linchamento da cidadã Fabiane, confundida com uma bruxa, deu-se no Brasil, país que vive na Idade das Trevas quando o tema é violência. Mas o que desencadeia uma multidão enfurecer-se a pretexto de caçar uma bruxa?
Há quem aponte para a mídia. Afinal, foi por meio de uma página virtual em rede social que se proliferou o boato de que uma mulher estivesse colhendo crianças nas ruas para fins macabros.
A dita página, porém, é apenas mais um fruto podre da banalização da violência arvorada na esfera midiática do mundo atual. Mais do que uma matéria informativa, a violência se tornou um chamariz de audiência para os veículos de comunicação[1], os quais já perceberam os múltiplos poderes domechandising da agressão humana. O primeiro deles é o caráter epidêmico da notícia passada[2]. Publicam-se os índices de crimes, comparam-se aos já mostrados anteriores e a conclusão, embora mostrada sob todos os rubores do espanto jornalístico, é a mesma sempre arrematada: a sociedade vive em um interminável caos típico de uma guerra civil e tal tessitura traz apenas duas alternativas: enclausurar-se em casa por medo do exterior ou agir para mudar a situação.
Consequentemente, instaura-se a tensão social de insegurança, associada à sensação da impunidade pela ausência do aparelho estatal. Funciona assim: alguém ouve uma notícia, transmite para outro e, como um viral, todos tem acesso a uma informação cuja discussão sobre sua veracidade é o que menos interessa Fatalmente, resvala-se na necessidade de fazer algo. Algo o quê? Isso a mídia responde com o recurso de mais um de seus poderes: a incitação. Partindo-se da premissa de que o Estado é ausente, e quando presente é omisso, a sociedade é orientada a assumir o “papel heroico” de se defender na legítima proporção da ofensa, isto é, retribuir a violência.
Paradoxalmente aos anseios de combate a criminalidade, o que se verifica é um banditismo social, onde aqueles que pensam vestir o uniforme do heroísmo no combate contra o mal, encarnam em suas atitudes um mal maior em relação ao supostamente combatido. O lendário Sócrates já afirmava[3]: revidar o mal com o mal é sempre uma conduta injusta e igualmente reprovável.
Depois do incidente de Fabiane, é comum também vermos opiniões apontando a ausência do Estado como fator causal do incidente. Ledo engano. O impacto da mídia neste caso, assim como em outros, deu-se porque houve espaço (a semente não fecunda em solo que não seja fértil). E a primeira falha está justamente na cultura de responsabilização alheia. Na sociedade atual, pautada pela hegemonia da autoproclamação de valores e cultismo à vaidade, procurar uma solução é examinar um objeto, sem jamais refletir sobre a ação do examinador no contexto pesquisado. O problema reside lá fora, é exógeno em relação à participação do espectador, de modo a tornar a autorreflexão incogitável. É sempre o outro o criminoso, a bruxa, quem não é digno de direitos...
No assunto da violência, não é diferente. Segundo Cardoso (1987, pp. 05-06) “o discurso sobre a violência opera um distanciamento entre quem fala e os ‘outros’, os bandidos”, havendo uma distinção entre criminosos e homens de bem, “estes caracterizados por qualidades morais referendadas pelo conjunto da sociedade” Assim, “o pobre mau, o pobre bandido, tem que ser punido. Porque esse não sou eu. Esse são os outros”.
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Dessa lógica do “Eu” em detrimento do “Ele”, nasce uma ideia de que para a defesa dos próprios direitos vale tudo, até atropelar o direito alheio. A crença na bruxa, portanto, não é (e talvez nunca fora) mera ignorância, mas fruto de uma necessidade particular de personificar os males da sociedade e expiá-lo com o sofrimento que não ousamos autoimpingir.
Assim, é de se esperar que tantos sirvam de massa de manobra a perpetrar a mesma violência a qual dizem abalar a segurança pessoal, afinal, falta ao cidadão a consciência de que sua inserção social lhe exige enxergar no outro a si mesmo, partilhando aos seus pares as mesmas garantias. Como ensina Carnelutti (2009, p.10), “somente quando chegarmos a dizer, sinceramente, eu sou como este, então seremos verdadeiramente dignos de civilização”. Nesse dia, cada caçador se reconhecerá na sua caça e a temporada estará permanentemente fechada.
REFERÊNCIAS
CARDOSO, Rute Corrêa Leite. A violência dos outros. Ciência hoje, v. 5, n. 28, 1987, suplemento.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Tradução: Carlos Eduardo Trevelin Millan. São Paulo: Pillares, 2009, p.10.
MICHAUD, Yves. A violência. Trad. L. Garcia. São Paulo: Editora Ática, 1989.
PLATÃO. Críton. In: Diálogos, da coleção Clássicos. São Paulo: Cultrix, [19--]. Disponível em: <http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/criton.pdf>. Acesso em 14 mai. 2014.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. JUNIOR, Alceu Corrêa. Teoria da Pena. Finalidades, direito positivo, jurisprudência e outros estudos de ciência criminal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[1] “(...) textos e imagens, fotos e vídeos, depoimentos e closes revelam a crueza dos acontecimentos-corpos mutilados, nus, des?gurados; vidas devassadas sem qualquer pudor ou respeito pela privacidade (...). Sentimentos intensos e ocultos como a agressividade, os preconceitos sociais, raciais e morais e, principalmente, o medo ganham vida própria no grande espetáculo”. (SHECAIRA, 2002, p. 378).
[2] Segundo Michaud, “como revelam pesquisas, poucas pessoas que afirmam sentir um aumento da insegurança foram elas próprias agredidas ou espancadas, mas ouviram falar de tal caso ou do que aconteceu em tal lugar. O que conta não é a realidade vivida, mas o que ficamos sabendo e o que a mídia deixa ver”.
[3] Sócrates- Logo, jamais se deve proceder contra a justiça.
Critão- Jamais, por certo.
Sócrates- Nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça, como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível.
Critão- Parece que não.
Sócrates- E daí? Devemos praticar maldades ou não, Critão?
Critão- Não devemos, sem dúvida, Sócrates.
Sócrates- Adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto?
Critão- Absolutamente injusto.
Sócrates- Sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma injustiça, não há diferença nenhuma.
Platão [19--]. Acesso em 14 mai. 2014.
Leia mais: http://jus.com.br/artigos/28880/o-brasil-na-idade-media-aqui-ainda-cacamos-as-bruxas#ixzz32wNhbhY3
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