O artigo 306 do CTB e sua tipificação desastrosa e arbitrária
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Um Direito Penal democrático não pode conceber uma incriminação que traga mais temor, mais ônus, mais limitação social do que benefício à coletividade.
INTRÓITO
O número de vítimas fatais de acidentes de trânsito no Brasil é reconhecidamente muito elevado. Embora as causas destas tragédias sejam múltiplas, os meios de comunicação, num incrível reducionismo, criaram um verdadeiro clamor em prol da tolerância zero de álcool na direção, o que resultou numa legislação desastrosa e arbitrária.
O que se pretende aduzir nas próximas linhas é que o trato intuitivo e não-empírico dado ao fenômeno, culminando na nova tipificação do artigo 306 do CTB, além de equivocado é intimidador.
Equivocado porque não se assenta em dados estatísticos a comprovarem a relação causa-efeito entre o consumo de álcool e os acidentes, ou, minimamente, que os acidentes provocados pelo consumo de álcool sejam quantitativamente expressivos num universo examinado.
Ademais, tudo em torno do problema se limita a falácias emocionais, como se casos isolados de condutores embriagados provocando acidentes formassem um argumento sólido para se criar um estado de terror para coagir a população, que se vê compelida a policiar hábitos dos mais comezinhos, como, por exemplo, ingerir um determinado medicamento.
ESTATÍSTICAS ENVOLVENDO ÁLCOOL E ACIDENTES DE TRÂNSITO
As informações oficiais que associam o mero uso de álcool aos acidentes de trânsito não são transparentes. Pelo contrário, são extremamente nebulosas.
De acordo com informações do DATASUS, o total de vítimas fatais de acidentes de transporte (Grande Grupo CID10: V01-V99 Acidentes de transporte) no período de 2011 totalizou o número de 44.553 pessoas.
A pergunta pertinente é: quantas destas mortes deram-se em decorrência do consumo de álcool?
As fontes oficiais não fornecem uma resposta concreta.
Estudo realizado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, denominado “Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes”[1] (Viva), abrangendo o período de setembro a outubro de 2011, entrevistou pacientes vítimas de acidentes de trânsito.
As seguintes questões foram formuladas na sondagem: “Você ingeriu bebida alcoólica nas seis horas anteriores à ocorrência?” e “O entrevistador identificou indícios de uso de bebida alcoólica pela vítima?”.
De acordo com os resultados, "a suspeita de consumo de bebida alcoólica pelo paciente foi registrada em 16,7% dos atendimentos", sendo 64,9% destes condutores, o que perfaz 10,83% de condutores suspeitos de consumo de bebida alcoólicanas últimas seis horas.
Ora, não é nada espantoso este percentual de pessoas que beberam nas últimas seis horas, pois, levando-se em conta que, de acordo com levantamento feito em 2007 pelo Ministério da Saúde, 52% dos brasileiros acima de 18 anos bebem e que 11% dos brasileiros bebem todos os dias:
“De acordo com o presente estudo, 52% dos brasileiros acima de 18 anos bebem (pelo menos 1 vez ao ano). Entre os homens são 65% e entre as mulheres 41%. Na outra ponta estão os 48% de brasileiros abstinentes, que nunca bebem ou que bebem menos de 1 vez por ano. No grupo dos adultos que bebem, 60% dos homens e 33% das mulheres consumiram 5 doses ou mais na vez em que mais beberam no último ano. Do conjunto dos homens adultos, 11% bebem todos os dias e 28% consomem bebida alcoólica de 1 a 4 vezes por semana – são os que bebem ‘muito freqüentemente’ e ‘freqüentemente’.”[2]
Além disso, são 10,83% para um longo período considerado (últimas 6 horas, isto é, ¼ do dia), não se impondo que uma pessoa que tenha ingerido 1 ou 2 copos de cerveja no almoço, bebida amplamente difundida no meio social, se abstenha de dirigir no início da noite por supostamente estar com sua capacidade psicomotora comprometida.
Assim, é evidentemente uma irresponsabilidade concluirmos, a partir destes parâmetros e despidos das pirotecnias midiáticas, que o álcool seja o vilão causador destes acidentes.
Vejamos outros números.
De acordo com dados estatísticos da Polícia Rodoviária Federal a respeito de acidentes de trânsito nas rodovias federais, em 2011:
“Na amostra da pesquisa, em que foram selecionados 1.166 feridos, 628 eram condutores, 431 passageiros, 72 pedestres, 34 ciclistas e 1 cavaleiro. Dos 628 condutores 27 apresentaram vestígios de alcoolemia.”[3]
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Como se observa, apenas 4% dos condutores apresentavam vestígios de alcoolemia, sem, contudo, comprovar-se precisamente o nexo de causalidade entre a ingestão de álcool e o acidente, e a correlação entre o consumo de álcool e o número de feridos, ficando tudo isso no plano das conjecturas.
Embora devamos assumir sensatamente que a embriaguez seja, de fato, nociva à direção, nem todo consumo de álcool se caracteriza como embriaguez. Portanto, não é sabido ao certo o percentual de condutores realmente embriagados nesta pequena fração de pessoas com vestígios de uso de álcool.
O slogan recorrente e simbólico “se beber não dirija”, buzinado incessantemente nos ouvidos do brasileiro, parece reforçar na sociedade um irreal sentimento de culpa pelos acidentes de trânsito, injustificável ao exame dos dados estatísticos, primo ictu oculi.
O bom senso deveria ser o parâmetro para separar as pessoas que bebem socialmente daquelas que se excedem e realmente causam perigo à coletividade, tal como há 73 anos enunciava o artigo 62 da Lei de Contravenções Penais, ainda em vigor.
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